Vésperas do Comunitarismo
Quase seis séculos antes do surgimento do que se tornou a sociedade cristã, nasceu, na China – essa mesma China que assusta parte do Ocidente – um homem a que se deu o nome de Ch´iu K´ung. Ele, com seu pensamento e teoria, ofereceu um parâmetro social, moral e humanístico para a Ásia. No Ocidente, ele se tornou conhecido como Confúcio. E, em grande parte do mundo cristão, tudo o que Confúcio pregou soou como religião. Mas não foi e não é. São visões e propostas de mundo que, muitas delas, coincidem com algumas de nossa cultura ocidental
Não há mais que se duvidar das transformações a que o vírus nos impôs, ainda que – na perplexidade mundial – ignoremos como elas virão. Virão, apenas isso. E nos instiga a buscar agulhas e linhas morais para remendarmos o desumano tecido social que vimos tecendo. Não apenas remendar, mas rasgar e jogar fora muito do que costuramos e temos usado. Ora – com todas as maravilhas da ciência e tecnologia – com esse esplendor de recursos admiráveis, que sociedades construímos? É possível, é admissível que – especialmente no Brasil – falemos de pobreza miserável, de fome, de multidões desamparadas? Como desfrutar do prazer do alimento sabendo que, não longe de nós, há pessoas clamando por um pedaço de pão?
O voluntarismo, o individualismo doentio do mundo ocidental levaram-nos a esse assustador caos moral que nos lançou como náufragos num mar implacável. Tem sido, até antes do vírus, um salve-se quem puder, de tal forma violentando-nos a alma, que a crueldade nos foi proposta como estilo de vida. Fazer o bem, ser solidário, propor a fraternidade – esses valores tão humanos passaram a ser notícia. E notícia, simplificando, nada mais é do que algo contrário ao cotidiano, ao habitual. O jovem que ajudou a mulher idosa a atravessar a rua alagada ganhou destaque nos meios de comunicação. Roubos, assaltos, violência, crimes, ódios passaram a ser parte da vida diária. O bem é a notícia.
O vírus já destruiu muitos desses falsos alicerces. O redespertar da caridade, da compaixão, da solidariedade – esse movimento anônimo que sabe a olor de fraternidade – revela o ser humano que tem, também, o divino em si próprio. O ser humano ressurge tal como, talvez, tivesse sido nos primórdios, auxiliando-se de caverna em caverna. E não me refiro à caridade terceirizada, aquele cômodo – ainda que útil – assinar cheques para instituições. É a caridade perfumada pela compaixão, esse sentir-se no lugar do outro, esse sofrer com o outro. O humano instinto de solidariedade, de sobrevivência comum, o vírus redespertou-o.
O Comunitarismo chinês foi sabedoria instintiva adotada pelos pioneiros na colonização dos Estados Unidos. Com profunda noção de liberdade – e paixão por ela – eles souberam compartilhar serviços, realizar ações conjuntas que atenderam a cada família em separado. Nunca se tratou de comunismo. O Comunitarismo é a convivência consciente de uma comunidade que – à ausência de governos competentes – encontraram soluções para os seus problemas. Os nossos condomínios – criados nos últimos tempos visando, principalmente, à segurança coletiva – podem ser a colmeia desse comunitarismo: a mesma máquina de cortar grama para diversas famílias, a compra de alimentos mais organizada, o transporte coordenado. Nos condomínios, apenas uma colmeia, uma sementeira. Na cidade, a real, a humana, a consciente, a solidária convivência entre pessoas responsáveis. O vírus deixa-nos às vésperas desse novo tempo. Que, ainda outra vez, dependerá de nós.
Cecílio Elias Netto
Jornalista e escritor