Para Madalena

Entristeci muito. E estou certo de muitos e muitos piracicabanos entristecerem-se também. Morreu Madalena, o travesti mais querido, mais gentil, mais caridoso de Piracicaba.
Muitos dos que apenas a viam pelas nossas ruas – dançando, brincando, jogando beijos, toda exagerada em seus trajes – podem até mesmo tê-la repudiado. É certo, aliás, terem-na visto, também, como a grande pecadora, a escandalosa, a transgressora Madalena. Pobres deles, com seus preconceitos, ódios e problemas pessoais. Madalena foi uma pessoa humana com e de coração imenso.
Orgulho-me de ter conhecido e de, junto com minha família, ter sido amigo dela. Devo-lhe favores sem conto. Quando tive, por um longo tempo, de cumprir prisão domiciliar, Madalena ia, quase todas as manhãs, até nossa casa. Ficava à porta, esperando ser atendida e, então, oferecia-me um ramalhete de flores. Quase sempre, fazia questão de entregá-lo em minhas mãos, pessoalmente. Ficava sentadinha na antessala, discreta, pacienciosa até que eu pudesse vê-la pessoalmente. Dava-me as flores, sorria e ia-se embora.
Certa vez, ficamos sem servidores domésticos, justamente na época em que vivi a prisão domiciliar. E lá nos chegou a Madalena – toda disponível, toda generosa – oferecendo-se para trabalhar. Ficou alguns dias e – enquanto a Mariana, minha mulher, não gostava do que ela fazia – eu me divertia ao ver as atrapalhações da Madalena, espírito e alma femininos, mas grosseiras e inábeis mãos de homem. E ela nunca teve sequer uma palavra ou um gesto de desrespeito, de indecoro.
Alguns anos depois – vivendo momentos dramáticos em minha vida, culminando com separação conjugal – fui morar numa casinha distante, retirada da área urbana. A distância, a dificuldade de transporte coletivo eram empecilhos para eu ter quem me ajudasse em serviços domésticos, nos quais a minha incompetência se tornou proverbial. Foi quando, em certa manhã, ouvi gritos que me chamavam por trás do portão distante da residência. Era Madalena. Ela andara alguns quilômetros – da rodovia àquele núcleo residencial – para se encontrar comigo. Ela fora à minha procura – sabedora de minhas dificuldades – oferecendo-se para me ajudar. E não lhe importaria se eu não pudesse remunerá-la. Mas, ainda dava. Um pouco. E Madalena foi o meu anjo da guarda, respeitoso e calado.
Madalena foi tão querida que se elegeu vereadora, atividade para a qual não estava preparada. No entanto, a vereança, para ela, propiciava especial oportunidade para servir os que precisavam. E quanto Madalena ajudou a quantos! E quão pouco a sua sexualidade – tão repudiada pelos impiedosos de sempre – lhe impediu o exercício da caridade. Acho que Madalena sabia mais do divino do que muitos de nós.
Madalena foi-se embora em circunstâncias trágicas, como se sua tão diferenciada existência exigisse um final turbulento. Na minha tristeza, fico imaginando Madalena pairando nas nuvens e ouvindo anjos e demônios saudando-a com alegria: “Bem-vinda entre nós. Aqui, os injustiçados e incompreendidos encontram respeito e paz.”
Que privilégio ter conhecido, de perto, tão especial ser humano ! Grato, Madalena. “Requiescat in pace”!

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Cecílio Elias Netto

Cecílio Elias Netto

Jornalista e escritor

2 comentários

  1. Giane em 7 de abril de 2021 às 22:52

    Sr Cecílio. Sou desde muito tempo, sua fã. Li sua emotiva homenagem e gostaria saber se posso le-l a em minha página do Facebook Causos e Contos de São Pedro?

  2. Marcia Cristina Guidi Ganzella em 9 de abril de 2021 às 13:21

    Sensacional! Parabéns pelo texto, estamos muito tristes com tamanha brutalidade, violência! O mundo está precisando de mais amor!

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